A
Arte da Resistência
Este texto foi originariamente
apresentado no “I Simpósio de Arte e
Cultura da Diversidade: Poéticas do Cotidiano”, organizado pelo Programa de
Pós-Graduação em Ciência da Arte da UFF.
Para não me estender
demasiadamente em conceitos que não podem ser entendidos rapidamente, quero
apenas enfatizar aqui que qualquer investigação sobre arte e ciência supõe uma
reflexão fundamental sobre a existência e que pode ser expressa na pergunta - “Quem
sou eu?”. Como um corpo social, estamos voltados basicamente para essa
pergunta fundamental também no sentido da nossa experiência cultural, ou seja,
como conjunto coeso de interações, de necessidades comuns, de ideologia, de
crenças, que fazem com que permaneçamos ligados por vínculos sólidos e
princípios éticos inquestionáveis. A maior parte dessas ideias que nos tornam
coesos faz parte da comunicação que é passada de consciência para consciência,
formando um ego social forte e necessário à nossa sobrevivência.
Comungamos mais ou
menos as mesmas ideias estabelecendo normas, regras, leis e desenvolvendo uma
ciência e uma tecnologia, assim como uma arte que confirme as nossas atitudes e
crenças. Um exemplo disso foi a arte do século 20. Esta arte se forjou
vinculada aos ideais científicos das ciências sociais, que teve como expressão
máxima as novas teorias que transformaram o século 20 num laboratório prático para
que a arte e a ciência caminhassem de mãos dadas. As ideias revolucionárias marxistas, que
identificamos como o centro do pensamento das ciências sociais do século 20,
caminharam passo a passo com uma arte que chamamos de revolucionária, uma arte
da resistência, uma arte engajada e promissora e que ventilava a busca de novos
ares para a humanidade e, individualmente, para nós mesmos.
A expressão “resistência” foi cunhada por esta nova forma de compreensão do
mundo. Borramos tudo de uma única cor – o vermelho – e definimos para nós uma
posição única de estar no mundo. Pelo
menos no mundo Ocidental, a arte passa a se constituir como arte de resistência
ao sistema, de resistência ao capitalismo, de resistência à exploração dos
países mais adiantados, de resistência popular à arte de elite, à arte burguesa,
enfim a arte resistindo à própria arte muitas vezes e criando barreiras que se
tangenciavam, mas que dificilmente se imbricavam umas nas outras.
O olhar do século 21 nos permite fazer uma
reflexão sobre o nosso conceito atual de arte e como precisamos nos desfazer
desse “olhar” comprometido com as ciências sociais do século marxista que
acabamos de deixar para trás. Inauguramos talvez uma nova percepção de mundo,
uma nova ética, uma nova experiência mística do ser em busca de si mesmo,
abandonando não a ciência, mas a resistência
que nos impomos diante de ideais europeus, que
importamos.
No Brasil, não temos uma arte de museus, a
não ser em um sentido muito pontual – ou
seja, aqui e ali, temos um Portinari, um Di Cavalcanti, uma Malfatti, uma
Tarsila, e alguns outros poucos, mas não temos movimentos expressivos que
tenham criado um acervo abundante e de qualidade realmente reconhecida não só
por nós, mas também pela crítica internacional. Desde 1920, com a nossa famosa Semana de Arte Moderna, que não tivemos
movimentos que pudéssemos chamar de expressivos para a nossa arte, fossem eles
quais fossem. Mesmo que alguns “especialistas” apontem para o construtivismo, o
concretismo e o neoconcretismo - da década de 50 - não temos de verdade, hoje
em dia, um desdobramento proeminente desses movimentos ondulatórios nas artes
plásticas. Por isso, é de extrema
estranheza quando grupos sociais utilizam expressões - arte de elite, arte de
museus - em contrapartida com a arte
popular que criamos no meio das ruas – ou no aconchego de espaços pobres e
comunitários - deste nosso vasto e extenso território nacional. Muitas culturas
convivem e se harmonizam umas nas outras na diversidade que nos acostumamos a
presenciar no nosso país. Chamamos de popular essa arte como se houvesse a
contrapartida de uma outra – a de elite
– e que estaria confinada em museus e cujos artistas seriam aqueles realmente
reconhecidos e cujas obras – seletas – colocariam a chamada arte popular em
desnível social, como arte não reconhecida, e por isso mesmo uma arte da resistência.
Na verdade, no nosso país só temos esta
arte que chamamos de popular. Inexiste no Brasil atual uma elite intelectual
forte. Até a década de 70, procurando otimistamente estender para a de 80,
tínhamos uma arte em alguns centros urbanos, como Rio de Janeiro e São Paulo,
que podíamos chamar de erudita até, mas de uma “elite” que – ironicamente - tratava
de temas populares, denunciando a exclusão social, do ponto de vista da ótica
marxista. Hoje, se há uma elite intelectual erudita, apenas temos dela ainda
conservados algumas pálidas espécies confinadas nas universidades, em alguns
órgãos de pesquisa, em alguns setores tímidos que ainda teimam em preservar o
patrimônio histórico, artístico e cultural de um Brasil que importava da Europa
um imaginário que não era seu. E esse tem sido o nosso ponto de
estrangulamento. Uma elite intelectual não deve vir atrelada apenas a uma forma
de pensamento, pois com esse tipo de atitude acaba por pagar o preço do seu
próprio aniquilamento, resultado do passar dos anos, do esgotamento de sua
única crença.
Na verdade, até o século passado importamos
da Europa a nossa arte. No teatro, por exemplo, Brecht mudou toda a concepção
teatral, a dramaturgia, a forma de interação público-plateia, criando um teatro
novo e revolucionário. O teatro da
consciência revelou que a arte tinha um papel de transformação social que
extrapolava o conceito de fruição estética da arte burguesa. No Brasil, tivemos
textos de Oswald de Andrade – com o seu famoso Rei da Vela – eclodindo num teatro de vanguarda associado a uma
luta de classes, contra a elite burguesa e a ditadura militar, que estranhamente,
ao invés de proteger a burguesia - como seria de se esperar - na verdade
perseguiu os seus filhos, torturando-os e, muitas vezes, eliminando-os ao longo
de mais de duas décadas.
Enfim, herdamos literalmente as ideias
revolucionárias da juventude europeia – da revolução russa até as duas grandes
guerras mundiais – recebendo em nosso território um grande contingente de
intelectuais jovens, que fugiram de seus países. Atores, diretores de teatro,
que por aqui aportaram, trouxeram não só as ideias revolucionárias marxistas,
mas também trouxeram a si mesmos, sua visão de mundo, sua resistência, seus
ideais.
Esse movimento se fez expressivo também na nossa música – as composições
de Chico Buarque eram inteligíveis apenas para os iniciados que comungavam os ideais marxistas. Expressivo também na
literatura, nas artes plásticas, enfim em todos os setores, já que a grande
maioria dos artistas passou a utilizar a arte como o lugar da denúncia social,
da resistência e do despertar coletivo.
Hoje em dia nos acostumamos a olhar o
mundo ainda por esta ótica manchada da resistência.
Ainda estamos resistindo, querendo
que a arte popular seja reconhecida, protegida, valorizada e mistificada. Não
nos perguntamos ainda do que se trata exatamente esse reconhecimento e por quem,
e que arte é esta. Não nos preocupamos exatamente com a nossa arte e a
qualidade artística dessa arte – já que essa conceituação é burguesa – mas com
o que os artistas estão fazendo para tornar sua arte popular e assimilável
pelas camadas mais carentes da população. E se esses artistas, ao se voltarem para as comunidades carentes, realizam algum “trabalho de base” que possa contribuir
com a melhoria do nível intelectual do povo.
Mesmo correndo o risco de expor um
pensamento contrário ao que foi defendido no século passado, gostaria de deixar
a minha contribuição no sentido de levantar uma questão que acredito primordial
para o nosso entendimento sobre a arte popular. Na minha opinião, não existe hoje
outra arte em nosso país que não seja a chamada arte popular. A velha dicotomia
entre a arte burguesa e a arte popular, que levamos mais de um século cunhando,
se mostrou estéril pelo menos na nossa realidade brasileira. Toda a nossa arte,
da menos à mais expressiva, nasceu e se desenvolveu como arte popular. Como já
disse anteriormente, mais do que felizmente, infelizmente não temos aquilo que
se pode chamar de uma arte burguesa expressiva, uma arte de museu, uma arte
erudita ou uma arte de elite. Digo infelizmente, porque a nossa resistência talvez nos tenha tornado menos
ricos em nossa diversidade cultural e artística, moldando os olhos através do preconceito rude de um proletariado imaginário.
Por outro lado, esse fato nos liberta, e é
exatamente isso que quero chamar a atenção aqui. É que não precisamos do
reconhecimento do outro para que a arte popular se firme. A arte do outro
também é popular, e ele também depende do nosso olhar para confirmar a sua
importância cultural. A arte das ruas, das comunidades – carentes ou não - criadas
dentro da necessidade de expressão da nossa constituição como povo, da nossa
busca por uma identidade cultural diversificada, é a nossa única arte. Cheia de
influências, de miscigenação de muitas culturas, muitas vezes desdentada e
inapropriada. Muitas vezes expressa com palavras erradas, com erros de
concordância, pintada com tinta de má qualidade, borrada, excessivamente diluída.
Repleta de danças com um formato indígena, negro, caboclo, cheia de folguedos e
intromissões, de cores e de um imaginário retirado dos muitos mitos que
carregamos das nações que nos constituíram. Não há a quê resistir, não há o que reconhecer.
Estamos todos já apropriados pela nossa brasilidade que reconhece o congado, o jongo, o maracatu, a capoeira, o
bumba-meu-boi, as inúmeras cantorias e rezas das benzedeiras, os repentes, o
cordel, a nossa irreverente facilidade de criar novas possibilidades baseadas
em antigas tradições. O samba, as rodas de umbanda, as giras, os pontos
cantados, a alegria e a tristeza que nos inspiram. Até mesmo no imaginário
poético da nossa relação com o divino. Mesmo nas igrejas importadas – com
santos que são, na sua maior parte, europeus. Ou então, com a importação e a
apropriação das ideias de Lutero, Calvino, também europeus, e que seccionaram as igrejas para nos fazer pensar – hoje em dia
– que cabe também na nossa diversidade esse jeito rigoroso dos ternos mofados e
das saias pregueadas e compridas das mulheres beatas.
Enfim, chamo a atenção para o fato de que
no século passado importamos o nosso saber, a nossa imaginação, a nossa
compreensão, a nossa política, a ética, a moral, a relação dos homens sisudos
dos países frios, as roupas, as divindades, a literatura, a poesia, a pintura,
os clássicos, os filmes, o teatro, a dança, o inconformismo dos povos europeus
e chamamos tudo isso de nosso por um bom tempo.
E esperamos que esse nosso,
como cobra criada, deite o seu olhar superior e reconheça o outro lado, aquele
que passamos o mesmo longo tempo escondendo, quem sabe para podermos depois
inventar aquilo que chamamos de resistência,
criando assim o nosso próprio inimigo, lutando contra moinhos de vento que
jamais existiram.
Esquecemos
que chamamos de nosso também os orixás, o carnaval, as escolas de samba, os
gingados mulatos e toda uma cultura negra importada. E que não a qualificamos
como erudita, já que permaneceu confinada nas senzalas. Mas que em outros
países pode ser borrada com a capa sofisticada daquilo que é importado,
exótico, diferente.
Enfim, a nossa arte é esta diversidade, presente
no batuques das ruas, nos
quintais das casas, nas tiras de papel repletas de poesia e penduradas nas
cordas, no barro espremido entre nossas mãos caboclas – em esculturas torcidas
como os filetes de alma que povoam os sertões.
E este meu depoimento tem a marca de uma artista que se
sente um pouco um animal em
extinção. Não faço parte desse popular, porque eu sou esse
popular. Não levo a minha experiência para as comunidades carentes porque os
meus livros penetram nas casas, sem discriminação. Este é o meu trabalho, como
escritora. É sozinha, no silêncio da minha alma que se expõe ao mundo, que
construo a minha identidade, o meu quem
eu sou? É assim o caminho dos artistas, dos poetas, dos pintores, dos
cantores, dos jongueiros, dos repentistas, dos capoeiristas, dos escultores,
dos atores. Esta é a nossa conversa com Deus. Não porque o social precisa de
nós, mas porque é na busca incessante do nosso próprio eu que nos revelamos ao
outro e entregamos a ele o que temos de melhor. E então o social se revela como
um coletivo de múltiplas expressões.
Na verdade, dançamos porque dançamos. Cantamos porque
cantamos. Escrevemos porque escrevemos. Enfim, vivemos, mesmo que não haja
motivo. E não há nenhum social capaz de explicar isso.
O que quero deixar claro aqui é que não precisamos mais nos
apegar aos nossos inimigos, aos burgueses, ao capitalismo, ao estrangeiro, ao
internacional. Não precisamos mais viver a divisão que criamos no seio mesmo de
uma arte popular, seccionando-a de acordo com modelos inventados pelas ideias
revolucionárias das ciências sociais do século passado. Afinal, já que não
temos mesmo uma arte burguesa, podemos relaxar na nossa obscura missão de
julgar a arte. Não precisamos mais gerar o ódio, a luta de classes, a
resistência, o medo, a discórdia, as guerras exageradas, as dissidências, a
corrupção de nossas almas envenenadas, a mídia do espetáculo, os sem teto, os
sem vontade, os derrotados, os descamisados, os boias-frias. Não precisamos
mais passar nenhuma demão de tinta em nossa paz de espírito, nem precisamos
mais ser revolucionários, frios, duros e calculistas. E nem mesmo precisamos
aprender uma forma de “não perder a
ternura jamais”.
Não precisamos mais criar nem mesmo novos
inimigos. Os que temos nos bastam. Precisamos agora reconhecer que não
precisamos mais de reconhecimento.
Que a nossa arte é única e toda ela popular. Que a resistência está fadada ao esquecimento. Estamos todos solidários no
mesmo projeto que é enxergar a nossa brasilidade, não pelo viés do olhar
estrangeiro, mas pelo viés da nossa diversidade, da nossa afirmação enquanto
cientistas, artistas, espiritualistas e nação ávida por novos anseios, novas
bases e um novo entendimento de si mesma.
Estamos recriando a possibilidade de
aproximar a arte e a ciência, agora não mais no interior de uma concepção
marxista, como foi a aliança entre a arte e a ciência no século passado. Mas agora
uma aliança que requer autonomia artística, ou seja, a possibilidade da arte
estabelecer seu próprio estatuto, mas ao mesmo tempo se colocando como alicerce
de uma nova ciência, que pressupõe novos paradigmas para construção de um novo
olhar científico. A arte e a ciência hoje – aliviadas da carga do passado - caminham
de mãos dadas no projeto único de investigação da nossa brasilidade, do “quem
somos nós, realmente”. E esse é um
projeto capaz de nos revelar a nossa verdadeira face, de recriar a nossa atual
identidade e de estabelecer para nós mesmos os nossos próximos desafios.
A arte, aliada às novas possibilidades de
uma ciência que se argui a si mesma, atribuindo a si mesma uma nova
consciência, será talvez o ponto de transformação necessário para a inclusão
social de todos. Talvez a menina dos olhos do século 21 seja esse florescimento
da consciência, e da possibilidade que temos de perceber que condicionamos a
nossa forma de existir e de nos inserirmos no mundo ao roteiro que nós mesmos podemos
construir para as nossas experiências artísticas, científicas, filosóficas e
místicas. Na verdade, o que nos acontece não é fruto apenas das oportunidades
deste planeta, mas das oportunidades que a nossa consciência busca, nesse afã
que temos de estabelecer uma comunicação interior espiritualmente rica, e que é
nomeada por nós como arte e ciência. Mas que também cria para nós a nossa
própria prisão, caso não tenhamos a clareza de que se tratam de conceitos, ou
como diz Foucault, tão apropriadamente, “de
palavras e coisas” ligadas por similitudes e analogias que nós mesmos
criamos.