A
Produção da Criança
Antes
de estabelecermos as estratégias que podem ampliar significativamente o número
de leitores no Brasil, precisamos em primeiro lugar determinar melhor a que
tipo de leitor estamos nos referindo. Pelo seu vasto território, pela
diversidade cultural que encontramos nas diferentes regiões do país, pela
incapacidade que os governantes têm demonstrado em gerenciar com competência a
questão da educação fundamental, pela dificuldade em determinar o que é
realmente melhor e não aquilo que é mais conveniente para a formação de novos
leitores, proponho que em primeiro lugar seja definido o nosso
público-alvo.
Precisamos
desenvolver o hábito de leitura em que criança, em que momento? Onde, mais
especificamente? Que classe social? Que faixa etária? Crianças do interior, da
periferia, dos grandes centros? Nacionalmente, regionalmente? De que modo?
É
importante, portanto, que estabeleçamos alguns limites para o nosso objeto –
criança – e as possibilidades que temos de realmente interferir na sua formação
como leitores.
O
segundo passo é determinar que tipo de literatura está sendo destinada a essa
criança e como ela tem sido consumida pelo nosso público-alvo. Se essa
literatura atende às necessidades atuais dos nossos jovens e se ela está a
serviço de uma autêntica busca intelectual pela arte. Ou seja, será necessário
voltar a atenção para a chamada literatura infanto-juvenil, procurando entender
o seu papel na formação de novos leitores, e como isso tem realmente acontecido.
Mais
que o livro didático, os programas pedagógicos e os quadrinhos, a literatura
infanto-juvenil possui uma legitimidade cultural crescente, apoiada na
universidade, nas escolas de 1o e 2o graus, na crítica
especializada, no movimento editorial, nas academias literárias, na psicologia,
na pedagogia e na educação. Possui, portanto, uma legitimidade que extrapola a
própria literatura , enquanto arte e expressão. Não é apenas arte, mas cumpre o
papel de facilitador na formação moral e social de um contingente expressivo de
seres que precisam de moldes para a sua atuação no presente e no futuro.
Por
isso, embora se queira como obra de arte, como prática estética, a literatura
infanto-juvenil dirige-se a um público leitor especial. Na verdade, escritas
para serem lidas por crianças e adolescentes, essas obras estão orientadas por
uma temática e um estilo que definem, determinando, o próprio público leitor.
Pensam por ele ou como ele deve pensar e mais legítimas e consagradas são
quanto mais próximas fiquem do que o ambiente cultural dominante estabeleceu ou
vem estabelecendo para esse ele. Ele é uma criatura
definida como “criança”, determinada como tal e historicamente produzida. A
família, a escola e uma cultura voltadas especialmente para essa criatura
cumprem, ao mesmo tempo, o papel de determinar seu ser – como “ser em formação”
- e pô-la em condições de assumir as responsabilidades que virão “para valer”, na
vida adulta. Nesse sentido, antes de ser dirigida à criança, a literatura
infanto-juvenil é dirigida (e produzida) por um discurso suficientemente
adulto, maduro e criterioso.
À
diferença da literatura para adultos, com sua própria história de estilos,
narrativas e temáticas, a literatura infanto-juvenil construiu-se num lugar
híbrido, fronteiriço com a didática e o moralismo, ambicionando alcançar uma
validez estética enquanto obra literária e/ou plástica, com seus próprios
cânones ou aqueles tomados emprestados à chamada grande literatura. É, no
entanto, no modo como é determinada enquanto literatura para crianças
que se encontra, sobretudo, sua especificidade, pois busca atender às
expectativas dominantes em relação à criança, reproduzindo-a como natureza
humana infantil, tornando-a exemplar da verdade infantil. Deste modo,
apresenta-se também como um discurso dessa verdade, que seleciona temas de um
tipo determinado e de uma maneira típica tida como “natural” e “verossímil” de
tratar esses temas.
Mais
que qualquer outra literatura de ficção, a literatura infanto-juvenil pode
funcionar adequadamente na reprodução de uma determinada ordem social, a um
nível só comparável aos manuais didáticos, às enciclopédias de vulgarização, ao
bom senso intelectual das colunas de jornal, às revistas de domingo, aos
livretos de conselhos médicos e sentimentais, aos almanaques de farmácia.
Obtém, por outro lado, uma eficácia incomparavelmente maior, dado que, ao
contrário daqueles discursos, cuja legitimidade advém de um ponto de vista
pretensamente “objetivo” e “técnico”, a literatura infanto-juvenil vem
legitimar-se não tanto pelo seu conteúdo ideológico, mas pela sua “forma”, isto
é, por ser considerada pelo seu valor estético.
Como sabemos, investigações
historiográficas muito cuidadosas no campo da história das mentalidades, vêm
desenvolvendo a tese – colocada no estrito plano do “sentimento de infância”- que a “criança” é uma invenção do século
dezoito, ou do final do século dezessete. A partir do trabalho de Phillipe Ariès
- “História Social da Criança e da Família”, outros especialistas,
seguindo ou não orientações estritamente historiográficas, vêm defendendo esta
hipótese e a aprofundando em várias direções, entre as quais a da literatura
para crianças.
Considerando
o conjunto desses materiais, cuja importância vem a cada dia aumentando,
partimos do pressuposto que a “criança” é uma formação social e histórica
particular, determinada pelo conjunto de relações sociais no interior das quais
pode ser personificada e reproduzida. Não importa para a definição de criança as
diferenças existentes no interior do grupo, como sexo, classe social, etc.,
desde que essas diferenças se encontrem determinadas pelo mesmo modo de
classificação, deslocado para cima ou para baixo segundo o critério da faixa
etária. Portanto, se temos que classificar o universo infantil, dispensamos as
diferenças - sejam elas quais forem - e utilizamos apenas o critério de faixa
etária.
Seguindo
a obra de Ariès e de outros estudiosos do assunto, vejamos como esse fato
aconteceu.
Separação
progressiva da criança do mundo do trabalho
Percebem-se aqui três movimentos distintos: na antiga
sociedade agrária, que se estende na Europa até o início do século XIX, adultos
e crianças estão misturados às tarefas agrícolas ou artesanais e, embora
subordinadas, as crianças desempenham importante papel econômico nessas
comunidades. No período de acumulação primitiva do capital e da revolução
industrial, as crianças, como os adultos, eram atiradas às fábricas para
jornadas de trabalho que excediam, muitas vezes, 14 horas diárias. No entanto, no
mesmo período, as crianças da classe burguesa já se encontravam inteiramente
separadas da produção, freqüentando os colégios e se preparando para seus
futuros papéis na gestão econômica. De meados do século XIX em diante, o ideal
burguês da infância se estende para as demais classes sociais, verificando-se a
progressiva separação da criança do mundo do trabalho e sua crescente colocação
na escola.
De
uma posição secundária e indiferente na organização familiar até meados do
século XVI, dominada então pela figura do “pater famílias”, a criança vem
assumindo progressivamente o papel central na ordem familiar, em torno da qual
reorganizam-se também os papéis adultos. A separação entre adultos e crianças
desenvolve-se com a escolarização, simultaneamente ao desenvolvimento de uma
moralidade que até então não havia. Este novo comportamento passou também a
interferir na sexualidade infantil, inaugurando aquilo que podemos definir aqui
como um padrão assexuado de moral infantil.
Com o desenvolvimento do “sentimento de infância”, que
começou a acontecer a partir do século XVII, crescem no século seguinte - junto
com os colégios e com a nova classe social emergente - as preocupações pedagógicas com a criança e a
separação entre o que deve ser acessível e o que deve ser proibido para ela,
inclusive no próprio discurso. Divide-se o discurso e a fala cotidiana em duas
partes: uma reservada aos adultos, outra permitida e reservada às crianças. Toda
uma pedagogia e psicologia infantil se desenvolveram a partir desta modificação
ocorrida na educação. Toda uma nova atitude social começou a se desenvolver em
relação à infância. Não faltaram “especialistas” nesses assuntos, inaugurando
uma nova ética que assegurasse a insurgência dos novos valores.
Hoje
a criança assumiu um papel inverso no seio da família. Jurandir Freire Costa,
em seu conhecido livro “Ordem Médica e Norma Familiar”, abordou o tema
do ponto de vista da constituição familiar brasileira desde a época do
colonialismo até os dias atuais. No momento em que o núcleo familiar
deslocou-se do regime patriarcal para a criança, criaram-se vínculos de
proteção do adulto em relação a ela, que a tornaram dependente. Apesar de
parecer contraditório, essa dependência, que se processa em todos os níveis –
econômico, moral, emocional, etc. – está intimamente ligada ao fato da criança
ter se deslocado do papel secundário em que permanecia até o século XIX para o
ponto central das atenções.
Essa
dependência e essa pseudoproteção, que tem se desenvolvido em torno da
criança, remetem ao mesmo aspecto de uma só questão: a dominação da criança,
pelo adulto, enquanto identificada como “ser em formação”. Uma dominação de
base social, que se inscreve no interior de um discurso utilizado pela família
e pela escola, e que tem a sua origem no controle que os “especialistas”
procuram exercer sobre o universo infantil.
A
educação passou, nesse sentido, por muitas etapas. Da repressão, aos modelos
mais modernos de controle, chegamos ao momento em que a criança se tornou
responsável pelos seus próprios atos, já que agora havia toda uma técnica de
persuasão através do diálogo. A criança passou a ser chamada para dialogar com
seus mestres e pais, num patamar de argumentação voltado para a lógica dos
tempos modernos. A formação da criança começou a ser canalizada para um
discurso de dominação, que se estende até hoje, pois se observarmos bem, ora
lhe caçam a palavra e ela se vê alijada do meio adulto, ora a aceitam e a
aprovam se o seu comportamento estiver de acordo com a definição de “infância”,
de acordo com o tipo de criança que elegeram como modelo.
Nesse sentido, a história da criança
se realiza plenamente quando chega a produzir-se como o “eterno infantil”. Sua
função é, em primeiro lugar, a de uma orientação didática que possibilite “a
confirmação daqueles valores morais decisivos para a educação burguesa, assim
como a transmissão de conhecimentos (científicos, técnicos, históricos,
organizacionais) necessários à preparação da atuação social do adolescente.”(COSTA,
1979, p. 15) (1)
Essa
nova classe social – a burguesia – dispõe também, a partir do século XVIII, de recursos
políticos que abrem novas possibilidades de manipulação. A queda da monarquia,
o advento da república, a própria democracia ocidental, a medicina higienista –
que diminuiu drasticamente a mortalidade infantil - tudo isso leva agora a uma
nova atitude diante das leis e da moralidade. O discurso “liberal” se inscreve
entabulando – inclusive com a criança - um diálogo monologal, em que só a voz
da nova ordem se expressa. Todos querem compreender, participar das novas idéias,
dos ideais dessa nova classe social. A
partir daí, constrói-se também uma literatura própria, especializada, que
pretende dar conta dos anseios desta nova criança fabricada e reproduzida nos
livros, nas revistas em quadrinhos, nos brinquedos, nos jogos, no cinema, na
televisão, nos discos, nas roupas, num universo específico criado
exclusivamente para ela, e que compõe toda uma indústria do infantil.
Portanto, é a criança burguesa, treinada
para entender o discurso e os argumentos dessa nova lógica, que irá se impor
como modelo para as crianças de outras classes sociais. O aparato familiar, e
também o escolar, atuarão e reagirão de acordo com esse modelo, imposto e
arbitrado, associando-se assim a infância com esta criança universal, para a qual
estão voltadas as esperanças da sociedade moderna.
Portanto,
nas oito séries do 1o grau, tanto nas escolas particulares quanto
nas públicas, o currículo unificado parte desse princípio básico, determinando
que todas as crianças, de todas as classes sociais, têm as mesmas experiências
de vida e as mesmas necessidades – mesmo que haja um apontamento para se
guardar as diferenças regionais. O currículo, em geral, determina, além das
cadeiras obrigatórias, a inserção de outras atividades comuns a todos. O tratamento
pedagógico dispensado tanto numa escola quanto na outra, conservada as mínimas
diferenças didáticas, são semelhantes. Se antes assistíamos a uma escola de
base explicitamente autoritária, hoje podemos perceber que esse autoritarismo
escancarado, mascarou-se. O diálogo monologal, a que nos referimos
anteriormente, é legitimado pela pedagogia e a psicologia moderna, com
brilhantismo. Um novo estatuto, este também autoritário, baseado no slogan da
“liberdade com responsabilidade”, introduz a autocensura, ameaçando cada aluno
- crianças e adolescentes – com as armas que o próprio sistema disponibilizou
para elas. A base do autoritarismo é a mesma, no entanto mais sofisticado, mais
apurado e menos condescendente. A criança, na escola, seja ela de que classe
social for, tenha ela necessidades distintas ou não, terá que se ajustar e se acomodar
ao que lhe é dado, sem nenhuma possibilidade de comparação – sem a
possibilidade de se espelhar em outros modelos - já que não lhe são oferecidas
outras alternativas.
Enquanto
o menino de classe média encontra, na família, o seu correspondente escolar, os
das classes menos privilegiadas estão longe de ter algum tipo de modelo
familiar parecido com aquele que a escola pretende para eles. Se antes, o filho
de um operário de formação pequeno burguesa, procurava alcançar o modelo
proposto, hoje – com um grande contingente de menores abandonados e de famílias
dilaceradas pelos novos hábitos sociais dos grandes centros – não têm nem mesmo
motivação para galgar um lugar social mais elevado. Na tentativa de minorar
essas dificuldades, as escolas públicas e particulares da periferia e dos
grandes centros urbanos oscilam entre o autoritarismo à antiga, quando os
valores morais eram preservados ao máximo, e as novas concepções de liberdade
impostas pelas teorias atuais.
A
família aí se constituirá também a partir das contradições que há muito perturbam
as classes mais abastadas, abalando já os papéis sociais desempenhados pela
mulher e pelo homem, de forma definitiva. O homem, provedor das necessidades
econômicas, e a mulher, sustentáculo da unidade familiar, praticamente não
existem mais. Hoje a mulher ocupa um lugar de maior importância no mercado de
trabalho, atribuindo a si mesmo funções que antes eram exclusivamente
masculinas. Já o grande contingente de crianças provindas de morros, favelas ou
de locais semelhantes, geralmente filhos de subempregados, profissionais
desqualificados, biscateiros, empregadas domésticas, colonos e operários de uma
indústria de exploração máxima - como a indústria da construção civil, por
exemplo - representam a maior parte da população brasileira, e dispõem de
elementos de sobrevivência adquiridos em sua prática diária. Filhos de famílias
numerosas, tendo que disputar, ainda no berço, o pedaço de pão repartido por
vários irmãos, esse menor carente, dilacerado naquilo que costumamos chamar de seio
familiar, deverá encontrar sozinho resposta às suas primeiras impressões de
vida. Na escola, ele deverá se ajustar a um universo distante, impossível, que
lhe é proposto todos os dias. Deverá mastigar dia-a-dia os números de uma matemática
insossa ou as palavras de um português que desconhece. Órfãs de pai e mãe, já
que ambos se lançam desesperadamente no mercado de trabalho em busca de
escassas conquistas, essas crianças são formadas na própria vida comunitária.
No caso urbano especificamente, comunidades aculturadas que nada ou quase nada
podem oferecer. A escola passa a ser o provedor alimentar, onde essas crianças
têm pelo menos a oportunidade de faturar um prato de comida. Quando ao ensino,
este não lhes foi destinado. Falam para outras crianças, que não elas. O que
lhe é dado na escola não é seu. O seu, ela precisou conquistar, o da escola não
lhe vale, muitas vezes atrapalha, confunde, desorienta e lhe escapa, como lhe
escapa esse infantil que os pedagogos procuram avidamente resgatar. Em todos os
casos, a criança tem sido seu próprio mentor. Deverá estar subjugada aos
critérios de qualidade determinados pela ideologia dominante. Sua autopunição virá
de sua maior ou menor inserção e adaptação ao modelo proposto. Quanto mais ela
se aproximar deste modelo de criança fabricada, mais ela será aceita pela
sociedade.
Com
o desenvolvimento tecnológico e a necessidade cada vez mais premente de
dotar-se um número maior de pessoas de elementos necessários à sua rápida
capacitação profissional, nivelou-se o sistema de ensino. Apesar do
ressentimento nacional, já que praticamente todos os segmentos da sociedade
foram prejudicados nesse “nivelamento por baixo”, esta situação permanece
estável de certa forma, já que os bem nascidos realmente dispõem de
outros canais que complementam satisfatoriamente sua formação. Os filhos de
classe média em geral se aprimoram em cursos de idiomas, em academias
esportivas, etc.
Portanto, falar em criança ou em literatura infantil é
falar apenas de um determinado tipo de criança, produzida pela ideologia
dominante e reproduzida pelos seus representantes: a família, a escola, a
comunidade, e os vários aparelhos culturais da sociedade expressos na indústria
do infantil. Nesse sentido, podemos afirmar que a própria reprodução da criança
burguesa em todos os níveis da sociedade, e inclusive no interior da própria
burguesia, parece contar com a colaboração intermitente da chamada literatura
infantil.
Para que criança, então, escrevemos? Em primeiro lugar
para as alfabetizadas, aquelas que já foram introduzidas no universo mental da
imaginação abstrata. A partir daí, pode-se trabalhar ou não o hábito de
leitura. Se a família tem o hábito de ler, certamente a criança terá. Se não
tiver o hábito de ler, mas de assistir tv, certamente ela também assistirá. Se
a família não tiver um nível intelectual mínimo, que possa sair das conversas
meramente prosaicas - como as que normalmente ocupam a maior parte das
conversas familiares - aumentam mais ainda as probabilidades. Se além de ter um
nível intelectual mínimo, se nessa família se conversa sobre arte, economia,
política, cultura, esportes, sexo, relações afetivas, etc., aumentam mais ainda
as possibilidades. Nesse sentido, cabem as famílias de classe média, a
continuidade e a preservação cultural que herdamos, onde a informação extrapola
aquilo que é veiculado apenas pelos meios de comunicação de massa. Mas nem
mesmo no interior das famílias mais abastadas há um intercâmbio cultural
efetivo, já que com a reforma de ensino o nivelamento provocou um
empobrecimento cultural deplorável. Portanto, sobra realmente um grupo muito
seleto de artistas, intelectuais e alguns outros poucos que desenvolveram – inclusive
através do hábito de leitura – o seu
universo pessoal.
No caso da escola, a situação é semelhante. Se a
escola pretende seguir o que está determinado no currículo escolar definido
pelo MEC é uma história bem diferente da intenção de estimular, com o mínimo de
interferência, o que cada aluno tem de melhor, privilegiando a diferença. A
educação não é apenas passagem de conhecimento, é apuro dos sentidos,
sofisticação do ser, cultivo da alma. A
educação é quase individual, é uma atenção especial que o professor deve
dedicar a cada um dos seus alunos, promovendo neles a sua própria descoberta. Mas
são poucas – ou quase nenhuma – as escolas que realmente colocam como ponto de
destaque o respeito pela diferença. Por isso utilizam um ensino pasteurizado, tornando
todos – crianças e adolescentes- iguais
e incompetentes para a idade adulta. Uma grande massa amorfa, sem critério, sem
atitude, sem escolha, sem pensamento próprio, sem discernimento, sem qualidade
interna de vida é despejada na sociedade por escolas que se dizem de vanguarda,
muitas vezes. Na verdade, essas escolas não estão sequer equipadas para a
formação mínima exigida pela reforma de ensino, quanto mais para a formação de
uma massa crítica.
A grande
transformação ocorrida a partir da geração dos anos 70 certamente saiu de
escolas que decididamente ensinavam o aluno a ter pensamento próprio. Pelas próprias
condições planetárias, essa geração cresceu nos albores de um pós-guerra,
quando então a humanidade havia descoberto o seu pior. Maio de 68 ficou marcado
como o momento em que o mundo precisou tomar fôlego e discutir abertamente
questões que antes ficavam relegadas aos pensamentos proibidos. As escolas
públicas – quem não se lembra do Instituto de Educação e do Colégio Pedro II, no
Rio – cumpriam um papel emancipador das mentes das crianças e dos adolescentes,
influenciando aí sim na formação de novos leitores. As escolas particulares
eram poucas, e a maior parte pertencia à igreja católica, que apesar de ser
demasiadamente rigorosa ainda, tinha em seu quadro docente uma quantidade
expressiva de excelentes intelectuais. Respirava-se
cultura importada da Europa basicamente. Mas um tipo de cultura que cumpriu
durante um bom tempo a função de introduzir nas mentes questionamentos,
crítica, avaliação e transformação – que resultou numa revolução dos costumes,
da família, da mulher e das chamadas minorias oprimidas.
No final do século XX, a educação se deteriorou.
Estamos vivendo o resultado da aculturação, da repressão, da liquidação do que
tínhamos de melhor – a formação dessa massa crítica que nos custou tão caro. Claro
que a ditadura militar tem o seu quinhão de responsabilidade no atual cenário
cultural, mas também e principalmente a aculturação da classe média, promovida
pelas escolas de primeiro e segundo graus, acrescida da inexistência de valores
familiares – sejam eles quais forem – complicaram ainda mais a situação. A
questão política e econômica também tem sido decisiva. O atual modelo econômico
do neoliberalismo tem cultivado frutos amargos que estamos já colhendo
praticamente no mundo inteiro. Portanto, se queremos falar na formação de novos
leitores, devemos levar em consideração a especificidade atual da aculturação
em nosso país e a inexistência de uma massa crítica nos vários segmentos da
nossa sociedade.
A educação agoniza. Os recursos humanistas que
tínhamos ao nosso dispor foram relegados à prateleira do arquivo morto da nossa
memória. Pensar filosoficamente, ou seja, pensar na nossa condição humana, na
necessidade que temos de buscar elementos para o nosso desenvolvimento
individual, são questões que esbarram hoje numa competência funcional inadequada.
O mercado de trabalho suprimiu – definitivamente – questões que sempre
conduziram a humanidade para o interior de si mesma. Pensar filosoficamente é
algo que nos oprime hoje, enquanto sabemos que civilizações inteiras alcançaram
altos patamares de desenvolvimento social tendo por objetivo a compreensão
básica da existência no aqui e agora. Se a educação não se volta para a
introdução do ensino da filosofia, do ensino poético, do ensino emancipatório,
sobra apenas um punhado de escravos mecanizados pelo cotidiano de uma sociedade
incapaz de refletir sobre si mesma.
Por isso, respondendo rapidamente às questões
colocadas pelos pós-modernos, seria interessante sim que retomássemos, pelos
menos naquilo que se mostrou emancipatório, a herança do Iluminismo,
introduzindo as conquistas primordiais dos séculos subsequentes.
Portanto, se escrevemos para crianças e adolescentes
de classe média, já que os menos favorecidos ainda precisam se fixar na sua
própria sobrevivência física, que tipo de literatura oferecemos? Por outro
lado, se essas crianças de classe média também estão aculturadas, estão
condicionadas a um pensamento amorfo e destituído de uma visão crítica, escrevemos
pra quê? Afinal, quem está apto a ler?